Tuesday, January 2, 2007

Secretário de Ministro




Num fim de tarde de Primavera, fui sentar-me num dos bancos da fonte da pequena aldeia onde nasci. Revejo algumas figuras que povoaram o universo da minha juventude. De repente, desenha-se, em linhas pouco definidas, um casal que, não habitando sistematicamente a povoação, ali aparecia – como quem vai de férias – duas ou três vezes por ano. Fixo a minha memória na representação daquelas duas figuras tão diferentes dos homens e das mulheres da minha aldeia: O" t’Esquim Roso e a ti Cesária".
Recordo os nomes, o aspecto físico, o vestuário, a pouca ou nenhuma convivialidade com os outros. Ninguém ousava perguntar-lhes o que quer que fosse, nem sequer por onde tinham andado.
O t’Esquim Roso nunca emigrou, como a maioria dos homens do seu tempo. Ninguém o vira,por ali, trabalhar, por conta de outrem. Ausentara-se com a ti Cesaria, quase misteriosamente, não se sabia para onde, só regressando de tempos a tempos. Era um homem alto com uma grande barriga, o que justificava uns bons oitenta a noventa quilos de peso Constava que alguém já os tinha visto para os lados de Pombal a pedir esmola de porta em porta, alegando que eram doentes. Ele dizia ter “barriga d’água”. A companheira, que mal abria os olhos, como se sofresse de uma permanente irritação das pálpebras, segundo também constava, punha pimenta nos olhos para alegar, no peditório, que tinha doença. Parece que não andavam juntos. Só se juntavam, periodicamente, para fazerem a sua contabilidade ou para passarem alguns dias na aldeia. Isto era o que se dizia…
Quando vinham à aldeia, contrastando com a fraca roupagem da população, ele apresentava-se, ao domingo, com um bom sobretudo preto e bem calçado, ela cobria a cabeça com um lenço de merino, de fundo preto com pequenas flores e, tal como ainda se usava na altura, uma saia de lã pelas costas, à laia de manto medieval, o que, fazia deles uns “senhores”, com quem a restante população nunca estabeleceu uma relação de amizade ou até de normal convivência.
Os conhecimentos por ele adquiridos, no permanente deambular de porta em porta, ficavam muito aquém do que se poderia supor existir debaixo daquele sobretudo. O pedestal em que se colocavam dava-lhes o direito de não serem interrogados. Não colhiam as simpatias dos vizinhos, dando ares de quem também não precisavam deles.
Todavia, comigo ele conversava muito. Não seria uma conversa muito enriquecedora já que os seus reduzidos horizontes literários não poderiam despertar muito interesse junto de um jovem de dezassete anos. Porém, porque não dizê-lo, para mim, algumas vezes, transformavam-se em minutos de distracção, numa aldeia onde nada acontecia e ainda porque, onde todos me tratavam apenas pelo meu primeiro nome, ele e a mulher tratavam-me por senhor Abílio, o que me conferia uma importância que me caía bem.
Ora acontece que, sempre que eu vinha à aldeia, para passar férias escolares, ajudava os meus pais na loja que tínhamos e onde se vendia de tudo, como era hábito nas aldeias. Foi assim que, por motivos diferentes, nos encontrámos várias vezes. O t’Esquim Roso, na passagem pela loja, para beber um copo, vindo da missa dominical, eu, para o atender e com ele manter dois dedos de prosa.
Numa das conversas em que ele tentava mostrar-me a sua erudição, apesar de não ter frequentado a Escola, começou por me dizer que até sabia assinar o nome. Pôs a mão em cima do meu ombro e, vai daí, pede-me um papel e um lápis. Na posse daquele material, faz uma pausa, debruçou-se sobre o balcão e rabiscou o seu nome. Voltou a pôr a mão em cima do meu ombro e pergunta: Está a ver como eu sou capaz de assinar ?
Como eu, amavelmente, o elogiei, dei-lhe oportunidade para rematar com o seguinte pedido:
Ora o senhor Abilio é pessoa que conhece muita gente lá por Lisboa… Por isso, pode arranjar-me um emprego... Um trabalho que não me canse muito e que eu seja capaz de fazer. Olhe! Pode ser Secretário de Ministro… Estar sentado, numa boa cadeira de braços, a uma mesa, só a assinar papéis… Como vê, isso, sou capaz de fazer bem.

1 comment:

Lita said...

Vale pela actualidade. Não é preciso mais que rabiscar o nome. A propósito, não deixes de ver os noticiários e debates da nossa TV.